A Guerra na Ucrânia — “Os nazis da NATO na Ucrânia”, por Hasel Paris Álvarez

 

Seleção e tradução de Francisco Tavares

7 min de leitura

Os nazis da NATO na Ucrânia

 Por Hasel Paris Álvarez

Publicado por  em 25 de Maio de 2023 (original aqui)

Este texto é uma versão reduzida de um artigo publicado na revista El Viejo Topo #424 revista esta que pode ser adquirida aqui.

 

 

Desde Fevereiro de 2022, alguns dos relatórios digitais sobre o aumento do ultranacionalismo na Ucrânia foram apagados. Outros foram posteriormente modificados no seu título ou conteúdo e, finalmente, outros acrescentaram um aviso no início do texto, que é geralmente algo do género: “nada disto prova que a Rússia tem razão ou valida as acusações de Putin”. E desde então até hoje, claro, silêncio mediático.

Porquê? Porque um dos argumentos da Rússia para a guerra foi a “desnazificação da Ucrânia”. Por outras palavras: retirar de circulação as unidades armadas ultranacionalistas, erradicar a ideologia do separatismo étnico e da russofobia da Ucrânia e acabar com a reabilitação histórica dos colaboradores nazis, bem como levar a julgamento os elementos radicais que cometeram crimes de ódio e crimes de guerra nos últimos anos.

Os outros objectivos da Rússia são bem conhecidos: a independência do Donbas, o fim da corrida ao armamento na Ucrânia e a renúncia à adesão à NATO. Bem conhecidos e também bem compreensíveis, quer se concorde com eles ou não. A questão da “desnazificação”, no entanto, tem sido um ponto de discórdia para a opinião pública ocidental: estarão os russos a dizer que o povo ucraniano, que sofreu tantas vítimas na Segunda Guerra Mundial às mãos dos fascistas, é nazi? Os russos estão a dizer que Zelensky, que é de origem judaica, é nazi? Que disparate! Estes russos estão loucos, dizem que os ucranianos são nazis, que são toxicodependentes, que são satanistas e tudo o mais que a propaganda moscovita possa inventar!

                            Os manifestantes de Maidan

 

Foi dito que os russos tinham (simplesmente) inventado a questão, tal como “inventaram” as alegações de genocídio e perseguição étnica e cultural de minorias russas, russófonas ou russófilas no Donbas. A narrativa ocidental é que Putin estava (nem mais, nem menos) a tentar manipular a memória histórica para desumanizar o adversário e estimular o inconsciente colectivo dos russos, reavivando neles a memória mítica do glorioso Exército Vermelho que culminou a Grande Guerra Patriótica nos telhados do Reichstag de Berlim. Tratar-se-ia, em suma, de um mero dispositivo de propaganda sem qualquer verdade por detrás.

E se alguém reconhecia que havia alguma verdade por detrás disso, acrescentava imediatamente que isso não justificava as acções da Rússia. Acredito, de facto, que a ideologia, por si só, não é razão suficiente para travar uma guerra contra qualquer país. Mas talvez seja razão suficiente para que os supostos parceiros desse país abram algumas investigações, abordem o problema a fundo e façam exigências, ou, no mínimo, não branqueiem e armem até aos dentes os seus elementos mais radicais e problemáticos. Mas isto parece ser pedir demasiado a um Ocidente que vem de décadas de ter enaltecido ultra-nacionalistas, gangsters, contras e talibãs em todo o mundo. Aquilo a que Hilary Clinton chamou “os sectores mais entusiastas e motivados da população”.

Para ser claro, não se trata de concordar com os objectivos da Rússia para justificar a guerra – longe disso. Mas trata-se de estar disposto a compreender a parte de verdade que possa haver nas suas posições, pois só assim é possível entendermo-nos e levar a cabo as propostas e iniciativas necessárias para pôr fim ao conflito e instaurar a paz o mais rapidamente possível. É do lado europeu que esta questão devia ser a mais preocupante, uma vez que é suposto a Ucrânia integrar-se mais intensamente no quadro euro-atlântico, fundindo as suas instituições com as nossas e abrindo o acesso de qualquer um dos seus integrantes ao nosso território.

 

O nazi-fascismo visto da Rússia

Apesar de tantas evidências, o Ocidente tem dificuldade em ver que na Ucrânia haja algo parecido com um filho tardio do fascismo. Aqui, imaginamos a Ucrânia como uma democracia liberal promissora, que apenas quer aderir ao mercado comum e festejar a Eurovisão. O que para a opinião pública russa é uma evidência (“os nazis na Ucrânia”), para a opinião pública ocidental é o contrário (“não há nazis na Ucrânia!”). Esta divergência tem uma explicação, para além da propaganda numa ou noutra direcção a que nós, os povos do Ocidente, por um lado, e da Rússia, por outro, estamos sujeitos.

Trata-se das diferentes definições e experiências do nazi-fascismo. A primeira diferença foi referida no ponto anterior. No Ocidente, recordamos (ou fabricamos a memória) o nazi-fascismo como uma força estranha a nós, bons europeus, que veio de um lugar inexplicável e nos dominou, mas que foi rapidamente derrotada pelos EUA, com a sua guerra justa e libertadora. Na Rússia, a memória é diferente. Recordam-na como a última grande tentativa dos países da Europa Ocidental para esmagar a Rússia. Os nazis alemães, depois dos franceses napoleónicos, dos imperialistas polaco-lituanos ou dos imperialistas suecos. Uma guerra de agressão que se repetiu em vagas sucessivas durante tantos séculos, talvez desde o tempo das ordens de cavalaria teutónicas. É por isso que, na Rússia, se recorda o nazi-fascismo como algo intrinsecamente ocidental, algo que eles (os russos, ou melhor, os soviéticos) tiveram de derrotar a um custo de sangue maior do que qualquer outro, algo que hoje está reencarnado nos EUA e na sua tentativa de expandir a NATO directamente para o coração da Rússia.

O senador norte-americano John McCain promovendo neo-fascistas ucranianos, como Oleh Tyahnybok

 

O nazi-fascismo é também recordado como um fenómeno que cativou vários povos soviéticos, colocando-os uns contra os outros, como um canto de sereia que os afastava da Rússia e os tornava idiotas úteis do Ocidente, vítimas sacrificiais de (outrora) Berlim e de (hoje) Bruxelas e Washington. O mais doloroso na memória russa do nazi-fascismo não são os alemães a avançar para Moscovo, mas as colunas de colaboracionistas de origem finlandesa, cossaca, bielorrussa… e sobretudo ucraniana. Os nacionalistas ucranianos conceberam na década de 1940, de mãos dadas com o Reich de Hitler, o sonho de ser uma nação independente da Rússia, não só independente como em conflito mortal com a Rússia. É isto que os russos vêem na Ucrânia desde o final do século XX. Um nacionalismo que quer cortar agressivamente os laços que sempre teve com a Rússia. E não são só os russos que o vêem, de facto. Em Agosto de 1991, pouco antes do desmembramento da URSS, Bush pai proferiu um discurso em que alertava para este nacionalismo independentista ucraniano, que qualificava de “despotismo local” em Kiev, ainda pior do que a “tirania distante” de Moscovo. E acrescentou: “um nacionalismo suicida baseado no ódio étnico”. Hoje, as palavras de Bush sénior teriam sido consideradas propaganda pró-russa.

Por aqui surge o elemento seguinte que diferencia as definições. No Ocidente, concebemos o nazi-fascismo como uma força imperialista, uma grande potência que queria colocar toda a Europa Ocidental sob o seu domínio. A experiência da Europa de Leste foi diferente: o plano era cindir, dividir, balcanizar países e regiões. Não para unificar grandes espaços, mas para os fragmentar. Isto porque, como escreveu Lenine, as nações da Europa Ocidental consolidaram-se como Estados durante séculos, mas na Europa Oriental as fronteiras nacionais flutuaram muito mais (e ainda flutuam), formando Estados com uma imensa pluralidade étnica no seu seio. E como o nazi-fascismo apregoa a ideia de que cada grupo étnico deve ter o seu próprio Estado (como pretende o nacionalismo catalão), a tradução para a Europa de Leste só poderia trazer rupturas, guerras civis e deportações massivas de populações. A Rússia lutou (e luta) por um “mundo russo” onde caibam diferentes grupos étnicos e diferentes confissões religiosas. No entanto, a Ucrânia de hoje, à semelhança do nazi-fascismo da época, propõe um Estado monocultural e monoétnico, onde a maioria dos cargos são ocupados por ucranianos ocidentais, onde não há lugar para a religião ortodoxa russa ou onde não há protecção para qualquer língua minoritária que não seja o ucraniano.

Deste lado do continente, se nos perguntarem sobre o nazi-fascismo, diremos que foi sobretudo uma força anti-liberal, anti-democrática e inimiga do parlamentarismo. Do lado russo, porém, sabemos que foi sobretudo uma força virulentamente anti-marxista e anti-comunista. Este anti-sovietismo é o mesmo espírito que animou o nascimento da NATO e que, nos últimos anos, varreu a Ucrânia num processo de “descomunização” que levou à destruição de centenas de peças do património soviético, desde estátuas de Lenine a obras comemorativas do Exército Vermelho, no qual combateram centenas de milhares de ucranianos.

Por detrás deste anticomunismo esconde-se, pura e simplesmente, o ódio à Rússia e à sua história. A russofobia é a última grande divergência. Se perguntarmos aos ianques e aos europeus, o nazi-fascismo era, acima de tudo, anti-semita. O seu ódio étnico era dirigido aos judeus. Os soviéticos viveram-no de forma diferente. O nazi-fascismo matou mais alguns milhões deles do que de judeus. Para eles, o elemento de ódio étnico verdadeiramente definidor do nazi-fascismo teria sido a eslavofobia (ódio aos povos eslavos) e, especificamente, a russofobia. Este sentimento é, insistimos, o que há anos está no centro do projecto ultranacionalista que se apoderou de toda a Ucrânia. É o que os leva não só a destruir estátuas de Lenine, mas também do poeta Pushkin.

Alguns lobbies sionistas da órbita anglo-americana, como a Liga Anti-Difamação (ADL), afirmaram que forças como a Azov já não podem ser classificadas como neonazis porque não praticam o anti-semitismo. Isto não as exclui de forma alguma de serem neo-nazis aos olhos da Rússia. O facto de os nazis ucranianos não terem objectivos anti-semitas não os torna menos nazis; eles canalizam o seu chauvinismo e xenofobia para a russofobia”, afirma Sergei Markov.

E finalmente: a diferença de percepções que talvez seja a maior de todas. A nossa União Europeia dedica um dia anual à condenação conjunta e igualitária do “nazismo e do comunismo”, ambos entendidos como forças colectivistas e populistas, inimigas da propriedade pessoal e da liberdade. A alma russa tem uma visão muito diferente. Vê no nazi-fascismo (já desde os tempos da filosofia política marxista, como referimos anteriormente) uma forma endurecida de dominação do capitalismo, da burguesia e da grande propriedade, apesar de algum tique socializante. Ela não vê um parentesco do nazi-fascismo com o comunismo, mas com o liberalismo. E tão pouco partilha a tese ocidental de que o nazi-fascismo começou a sua carreira criminosa com o tratado Molotov-Ribbentrop entre os nazis e os soviéticos, mas que este tratado foi uma manobra contra os pactos anteriores do nazi-fascismo com as potências capitalistas (os franceses, os britânicos…).

Além disso, nem os italianos nem os alemães são, na opinião de Moscovo, os criadores do nazi-fascismo, mas sim os anglo-saxões. Os anglo-saxões trouxeram para a história o colonialismo exterminador, os campos de concentração, a eugenia e o racismo biológico, a guerra relâmpago e a modernidade industrial. E esses mesmos anglo-americanos são hoje os pais da NATO, os sequestradores da Ucrânia e aqueles que querem impor em todo o mundo uma Modernidade baseada na hegemonia capitalista e no unipolarismo ianque. E, frente a tudo isto, o sentimento nacional russo afirma-se. Sem fazer o esforço de compreender nada disto, não haverá solução para a guerra na Ucrânia, nem para os conflitos deste século no espaço euro-asiático.

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O autor: Hasel Paris Álvarez [1990 – ] é um politólogo espanhol. Licenciado em Ciência Política e da Administração pela Universidade de Santiago de Compostela, tem um mestrado em Segurança, Defesa e Geoestratégia pela UDIMA. Trabalhou como militar profissional e é analista em meios de comunicação, sendo colaborador habitual na revista El Viejo Topo. É autor dos artigos El populismo de Verstrynge (revista nº 356, Setembro 2017), Íñigo Errejón, el Fusaro español? (revista nº 383, Dezembro 2019) e La izquierda ‘galline’ e la decadência de Occidente (nº 395, Dezembro 2020).

 

2 Comments

  1. Obrigada pela lucidez e respeito pela inteligência alheia… fiquei como que parada no tempo vislumbrando um passado, consciencializando o presente e apavorada com o que o futuro que se avizinha… isto porque sou das que acreditam que os interesses prevalecem acima da justiça e da razão…
    Obrigada…

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